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Se são fake, não são news

“A mentira tem perna curta”. Quando alguém, nos confins da História, concebeu este dito popular, ainda a Internet nem sonhada era.

Se são fake, não são news

Entretanto, nasceu outra máxima, atribuída ao ministro da Propaganda de Hitler, que destrói a anterior: “uma mentira mil vezes repetida torna-se verdade”. Trata-se, então, de saber: primeiro, se a mentira tem a perna tão curta que a podemos apanhar; segundo, se a disseminação altera a sua natureza; finalmente, se a internet é a culpada dessa mudança. Nenhuma das questões tem uma resposta absoluta, mas todas merecem reflexão, neste Dia das Mentiras.

Comecemos por esclarecer conceitos. Má informação não constitui, forçosamente, desinformação, pelo que não é lícito confundir um erro, passível de correção, com uma mentira deliberada. Por outro lado, a vulgarizada designação de fake news encerra um equívoco: se são news, não são fake. É suposto que uma notícia, quando produzida por um jornalista, corresponda à verdade, sem prejuízo da interpretação dos factos.

É certo que as fake news sempre existiram. Porém, não deve ser ignorada a tecnologia que converte um lento boca-a-boca num supersónico meio de difusão de mensagens, simultâneo, pelos quatro cantos do mundo. É aí que entra a Internet, mas concluir que as fake news são um problema das redes sociais é não só precipitado como irresponsável. Para lá da árvore, está a floresta: o problema é muito mais profundo; é de (sobrevivência da) democracia.

Não, não exageramos. Os veículos que proporcionam o exercício da liberdade de expressão também servem para transmitir mentiras – que influenciam atos eleitorais, fomentam a polarização política, são instrumento ao serviço do populismo e até já mataram pessoas. Na recente obra “As fake news e a nova ordem (des)informativa na era da pós-verdade”, que reúne contributos de diversos investigadores, Ciro Marcondes Filho descreve assim o funcionamento do sistema: “fake news atua em dois planos básicos: no bombardeio a médio prazo, constante e intermitente, através de blocos monolíticos de pensamento (os estereótipos), de fácil absorção e nenhuma reflexão, e na ação pontual em momentos decisivos, por meio do massacre volumoso de posts nos Facebooks, Twitters, Whatsapps de grande círculo de pessoas”.

Como assinala aquele investigador brasileiro, o efeito do “contínuo mediático atmosférico” é múltiplo: “maior a viralização, maior a influência, mais ganhos de capital em moeda digital (patrocínios, participações, novas oportunidades)”. Também aqui bate o ponto: para começar a desfazer o nó das fake news, teria de ser assegurada a cooperação de gigantescas multinacionais que muito dinheiro ganham com este circuito e muito pouco fazem para o disciplinar. Não é possível, portanto, ignorar a vertente indústria, que está longe de se circunscrever a essas empresas. Muitas outras lucram com a disseminação, perfeitamente consciente, de fake news. Daí que esforços desenvolvidos pela União Europeia, de estímulo à autorregulação, não sejam mais do que uma inofensiva fisga para lidar com o problema. O mesmo se diga de decisões avulsas tomadas por estados – alguns dos quais, a pretexto da caça a fake news, empreendem, na realidade, a perseguição a vozes discordantes.

Pode imputar-se ao Jornalismo a responsabilidade de ajudar a travar o fenómeno? Sim, na condição de não ser ele próprio contagiado pelo vírus, ao violar regras profissionais básicas como a de confirmar as informações recolhidas. Sim, desde que não se deixe levar pela prioridade concedida à difusão imediata, em detrimento da garantia de rigor. Sim, se evitar o flirt com as redes sociais, sem os cuidados que se exigem.

Do lado da oferta, digamos assim, os fact checkers são fundamentais, mas insuficientes. Do lado da procura, o aprofundamento da literacia mediática só produz efeitos a prazo. E, depois, há a tendência de muitos de nós, quantas vezes levada por emoções, para aceitarmos mentiras como verdades. Se apenas procuramos informação capaz de confirmar as nossas convicções – dito de outra forma: se acreditamos no que queremos acreditar – está criado o caldo de cultura para sermos manipulados, antes de manipularmos os outros, com as sedutoras partilhas.

Solução? Não existe e dificilmente poderá vir a ser descoberta. O que pode e deve existir é uma atitude cidadã: desconfiar do que nos oferecem. E verificar, verificar, verificar. Nem tudo o que luz é ouro.

Texto elaborado pelo Professor Paulo Martins do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.

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