No Dia Mundial da Criança falámos com o Professor Carlos Neto , da Faculdade de Motricidade Humana , sobre a importância de as crianças brincarem.
Dia Mundial da Criança | Entrevista ao Professor Carlos Neto
Porque é que temos de libertar as nossas crianças?
Todas as crianças têm o direito de brincar de forma livre, independentemente da sua idade, género, condição social, cultura ou espaço geográfico, de acordo com o Art.º 31.º da Declaração Internacional dos Direitos das Crianças. Esta causa, estudada e defendida durante a nossa carreira académica e agora colocada no livro “Libertem as Crianças”, pretende lançar um alerta, reflexão de como as crianças têm vindo a perder ao longo das últimas décadas qualidade de vida de viver a sua infância de forma plena. Trata-se de nos questionarmos, se as crianças dos nossos dias, têm tempo disponível dos adultos para terem tempo de serem crianças. Observa-se um aprisionamento progressivo da sua liberdade de ser, existir e terem oportunidades de crescerem saudáveis nos contextos de vida quotidiana: família, escola, comunidade e em contacto com a natureza.
Considera que quanto mais as crianças brincarem maior será a disponibilidade para aprender?
O comportamento de brincar pode ser observado em muitas espécies animais, principalmente na infância, sendo uma ferramenta poderosa para aprender várias competências fundamentais para o seu desenvolvimento: capacidade adaptativa a situações novas ou adversas, capacidade de confrontação com situações arriscadas, regulação emocional, melhor literacia motora, maturação cognitiva e melhoramento das relações sociais. O brincar é ainda em muitas circunstâncias quotidianas considerado um comportamento secundário, de segunda escolha ou inútil, ao contrário dos benefícios que a evidência científica tem demonstrado ao longo dos últimos anos. Brincar é aprender e fundamental para o futuro da humanidade (incerto, imprevisível e desconhecido), que exigirá cada vez mais capacidade criativa e adaptativa.
Há hoje uma evidente tendência para o desenvolvimento de doenças cardiorrespiratórias, pulmonares, excesso de peso e diabetes nas crianças. Como sociedade, onde estamos a falhar?
Numa sociedade exausta, cansada e no limite, temos observado a um grande aumento de sedentarismo e inatividade física em todas as idades, provocado pelo aumento do número de horas que passamos sentados e a uma sedução inevitável pelos dispositivos digitais. O nível de mobilidade degradou-se assim como as possibilidades de ter um corpo ativo e contemplativo. Necessitamos com urgência de desenvolver uma visão ecológica e sustentável da vida humana em sintonia com a preservação da natureza. É urgente novas políticas públicas para a gestão das comunidades, das escolas e das famílias para se evitar um agravamento da saúde física, mental, emocional e social.
Quais as estratégias que poderão ser uteis aos pais para que as crianças passem menos tempo ligadas aos écrans?
A melhor estratégia é o bom senso. As relações entre a literacia lúdica, motora, artística e desportiva, deve ser equilibrada com a literacia digital, através de pais emocionalmente disponíveis para terem mais tempo para os filhos e um modelo organizativo das escolas em desenvolverem mais equilíbrio entre atividades formais e informais. Aprender através de um corpo em movimento que é o arquiteto do cérebro e ao mesmo tempo mediado por sentimentos, afetos e emoções, que dão o sentido na nossa existência. Teremos que equacionar um novo conceito de qualidade de vida entre pais e filhos, que passa por um equilíbrio nas experiências entre espaços interiores (indoor) e espaços exteriores naturais ou construídos (outdoor). Será necessário mais tempo disponível dos pais para poderem brincar com os seus filhos e poderem recuperar as suas memórias de infância, que progressivamente se “apagaram” ao longo do tempo.
Considera que o sistema de ensino em Portugal deveria dar mais tempo para as crianças brincarem?
O brincar na escola é não só fundamental ao desenvolvimento integral de crianças e jovens, como essencial no sucesso escolar e processo de socialização. A obesidade curricular existente na escola tem de ser repensada, bem como a forma como como se operacionaliza o processo de ensino e aprendizagem. Na escola não entra só o cérebro, entra o corpo todo. A escola não é só a sala de aula, é também todo o espaço exterior e sua extensão para a comunidade. Fornecer oportunidades de espaço e tempo para crianças brincarem de forma livre em espaços interiores e exteriores é a melhor estratégia para formar pequenos pesquisadores, cientistas e artistas para o futuro do mundo. Teremos de transformar a escola a tempo inteiro, numa escola de desafio, prazer e aventura em atividades novas e reinventadas perante as motivações e modelos participativos das crianças.
Neste dia mundial da criança qual a mensagem que gostaria de dedicar às famílias?
O dia mundial da criança e do brincar são datas que nos podem fazer honrar as crianças que fomos no passado. Os pais querem tudo de bem para os filhos, mas a proteção em demasia desprotege-os na possibilidade de terem mais confronto com o risco, mais mobilidade ativa e autonomia, contacto com a natureza e possibilidade de identidade do espaço onde vivem e crescem e de conquistarem mais amigos no seu processo de socialização. Nesta angustia pandémica em que vivemos, teremos que restaurar o corpo das crianças e dos pais, com mais tempo e espaço para a realização de novas experiências e descobertas.
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