No Dia Nacional da Cultura Científica fomos falar com o Professor Mário Figueiredo, professor do Instituto Superior Técnico , sobre a importância da ciência no dia-a-dia.
Dia Nacional da Cultura Científica
Desde 1994 que o Professor dá aulas. Qual a principal diferença no ensino da ciência desde então?
Ao contrário do que é comum dizer-se, eu não vejo uma grande mudança qualitativa no ensino destas matérias nos últimos 30 anos. É claro que muitos aspetos acessórios/operacionais mudaram radicalmente; por exemplo, em 1986, as fotocópias eram um suporte tecnológico importante no ensino, enquanto, no presente, o acesso online a todo o tipo de documentos é trivial e generalizado, hoje em dia, o aluno que assim o entenda, pode assistir no seu computador a aulas sobre qualquer matéria, dadas em universidades de muitos locais do globo, podendo escolher assim professores, níveis e estilos de ensino diferentes.
No entanto, aquilo que é a essência do processo ensino-aprendizagem não mudou. O professor precisa de expor os estudantes à matéria que está a ser coberta, processo que tem várias vertentes e formas: desde a exposição propriamente dita (que pode ser feita de muitos modos, como a clássica aula expositiva, a condução de um processo de descoberta durante a aula, ou mesmo a realização de experiências ilustrativas) até ao esclarecimento de dúvidas, discussão de aspetos mais difíceis e o fornecimento de materiais pedagógicos (nomeadamente textos). Ainda mais importante é o papel motivacional do professor, de estímulo da curiosidade (se possível, de fascínio) pela matéria em causa, cujo impacto na aprendizagem é decisivo. É esta curiosidade que coloca o estudante em estado de absorver conhecimento, o que se pode concretizar através de vários processos diferentes, desde a leitura atenta e curiosa de textos até à audição de uma explicação clara por um professor que conhece e sabe descrever todos os ângulos de uma determinada ideia ou assunto.
Embora haja hoje um leque variado de ferramentas de suporte ao ensino (desde demonstrações online, cursos em vídeo, testes em tempo real nas aulas, simulações computacionais), estas são apenas as circunstâncias do momento. A essência do ensino está no estímulo do interesse e da curiosidade e na capacidade de satisfazer essa curiosidade. Nada me dá mais satisfação e sensação de dever cumprido como professor do que quando um aluno me diz, no fim de uma aula: “agora é que percebi que este assunto é mesmo interessante!”
Sabemos que nos seus projetos é frequente colaborar com colegas e estudantes. Para si qual a mais-valia de juntar diferentes gerações em projetos científicos?
Tenho alguma dificuldade em responder a esta questão, pois na minha experiência encontro uma correlação fraca entre a idade e o nível de motivação e curiosidade. Já conheci colegas à beira ou para lá da aposentação que continuam a possuir uma enorme curiosidade e vontade de saber e descobrir, bem como jovens investigadores que rapidamente se deixaram sucumbir a uma vida de burocrata e deixaram apagar a chama da motivação e curiosidade.
Dito isto, no entanto, é natural que equipas envolvendo várias gerações de investigadores tenham várias características muito positivas. Os mais seniores tendem a ter uma visão mais abrangente (quer em termos temáticos, quer em termos de abrangência temporal), o que os ajuda a colocar em perspetiva os problemas e as inovações que vão sendo propostas, criticadas, testadas. Os mais jovens, têm menos apego às ideias estabelecidas e estão mais dispostos a avançar com ideias inovadoras. Da combinação destas diferentes posições pode esperar-se avanço no conhecimento, mas solidamente alicerçado no conhecimento estabelecido. Uma citação (que aprendi com o meu colega Pedro Aguiar) do famoso pianista Glenn Gould caracteriza bem esta ideia: “Invention is, in fact, a cautiousdipping into the negation that lies outside system from a position firmly ensconced in system.”
Se tivesse que indicar 3 entraves com que os cientistas frequentemente se deparam quais seriam?
Para responder, vou focar-me apenas na realidade portuguesa, embora alguns destes aspetos sejam comuns a outros países, e não vou ordenar os entraves por qualquer ordem particular. Além disso, em vez de entraves, vou chamar-lhes dificuldades.
Uma dificuldade com que a maioria dos cientistas portugueses se deparam é a imprevisibilidade do financiamento. Esta imprevisibilidade (que também caracteriza o financiamento de origem europeia e não só) tem origem, não só na irregularidade com que o principal financiador de investigação em Portugal tem realizado os concursos nas últimas décadas, mas também (e isto é comum ao financiamento europeu) na muito baixa taxa do sucesso, a qual exacerba o carácter muito ruidoso e falível das avaliações das propostas. Esta imprevisibilidade coloca uma grande dificuldade e um enorme peso de responsabilidade nos ombros de qualquer cientista que queira criar, manter e sustentar uma equipa de investigação. É claro que esta dificuldade não afeta todos igualmente, sendo menor nos países mais ricos e nas instituições mais fortes, bem como para os investigadores mais estabelecidos e com mais experiência nos mecanismos de acesso a financiamento. Esta renhida competição com base em propostas de projetos submetidas a financiamento com ciclos curtos (3 a 5 anos) tem outros aspetos negativos, sendo os mais óbvios o encorajamento de apresentação de objetivos irrealistas e a supressão de trabalho de longo prazo ou com resultados mais incertos, estimulando um trabalho de natureza incremental.
Uma outra dificuldade associada ao facto de Portugal ser um país relativamente periférico e com salários baixos no meio académico e científico é a sua baixa atratividade para estudantes e jovens investigadores estrangeiros. Os estudantes (nomeadamente os de doutoramento) são a “seiva” que mantém viva a investigação académica, sendo que o seu talento e qualidade têm enorme impacto no desempenho científico de um grupo, escola, universidade ou país. Os responsáveis governamentais pelo sistema científico nacional tendem a não ajudar, ao manter barreiras burocráticas que não se encontram em muitos outros países, tais como processos kafkianos de obtenção de equivalências de diplomas, os quais desencorajam muitos potenciais candidatos estrangeiros e os levam a seguir para outras paragens. Em áreas muito ativas de investigação, tais como a inteligência artificial e as ciências de dados, é impossível uma bolsa de doutoramento nacional (cujo valor se manteve durante década e meia), com os associados obstáculos burocráticos, competir com as ofertas da indústria, sendo quase impossível à universidade atrair os melhores talentos para doutoramentos nestas áreas.
Finalmente, uma dificuldade (neste caso deveria chamar-lhe mesmo entrave) à investigação académica em Portugal radica em vários aspetos do ordenamento legal da carreira académica. Particularmente nociva é a ausência de um chamado “tenure track”, ao colocar vários professores de um mesmo departamento em competição, entre si e com candidatos externos, por um lugar único na categoria superior, a qual inquina e desencoraja a colaboração entre colegas, contribuindo para um espírito de “cada um por si”. Em contraste, um sistema de progressão/promoção não competitivo (mas baseado numa séria avaliação de mérito absoluto) estimularia a colaboração, pois todos e cada um teriam a ganhar com o melhor desempenho científico que resulta do trabalho colaborativo. A investigação científica não é um jogo de soma zero, no qual os ganhos de uns são as perdas de outros, pelo que o funcionamento das respetivas carreiras também não deve seguir essa lógica.
Na sua opinião quais as principais evoluções científicas com que as futuras gerações se irão deparar?
Alguém disse que “a coisa mais acertada que se pode dizer acerca de uma previsão é que será, quase de certeza, errada”. De facto, a história está cheia de previsões espetacularmente erradas, em particular em ciência e tecnologia, entre as quais se destaca a famosa previsão do físico Albert Michelson em 1894, afirmando que “… parece provável que a maioria dos grandes princípios estejam já firmemente estabelecidos…”. Esta previsão foi feita poucos anos antes de a física ter sofrido duas revoluções, com o surgimento das teorias da relatividade de Einstein e da física quântica. Vou assim abster-me de fazer previsões acerca da evolução da ciência, limitando-me a referir áreas e problemas que penso que são centrais no presente e que continuarão nas próximas gerações.
Os dois problemas “últimos” da ciência são, na opinião de muitos, com a qual concordo, a compreensão do universo (física fundamental) e a compreensão de nós próprios (a vida e em particular o cérebro humano). Estes problemas estão longe de estar resolvidos e continuarão a alimentar a curiosidade e trabalho dos cientistas durante as gerações futuras.
A inteligência artificial e a aprendizagem automática (machine learning) serão simultaneamente ferramentas de suporte de evolução científica e técnica em muitas áreas (tais como a biologia e a medicina), mas também elas próprias objetos de estudo e desenvolvimento científico e tecnológicos. O impacto destas ferramentas na sociedade a diferentes níveis é já e continuará a ser objeto de diversas áreas de estudo (sociologia, psicologia, ciência política, economia...).
Os problemas ambientais colocam uma ameaça existencial à humanidade que apenas pode ser enfrentada com a ajuda de avanços científicos e tecnológicos, pelo que esta deverá ser uma área de grande importância para as próximas gerações. Desenvolvimentos em climatologia, biologia, ecologia, economia, várias engenharias e muitas outras especialidades científicas e tecnológicas deverão contribuir significativamente para a abordagem a este problema fundamental.
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